segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um Pequeno Pedaço do Paraíso - Fase 1 - Capítulo 1


Um novo começo para minha vida miserável

"Não importa o quão bom for seu coração, ele sempre terá um pingo de maldade" - Dark (My Opera)
            Vou fugir desta casa.
            Sei que já disse, e fiz, isso antes, mas continuarei repetindo, e fazendo, até que ele não me encontre e eu possa finalmente viver em paz. Mas para que você entenda sobre o que eu estou falando, vamos começar do início:
            Eu me chamo Samuel Barcellos, tenho dezesseis anos, neste momento estou morando com meu desgraçado pai e a mulher que ele escolheu para roubar. Não me entenda mal, ele não é meu pai verdadeiro, ele se casou com a minha mãe quando eu tinha dez anos, acho que ela foi a única mulher que ele amou.
            Eu não sou idiota, sei que ele se casou com a intenção de roubá-la, mas ele ficou, mesmo depois que o dinheiro acabou. Minha mãe, Elizabete Barcellos, tinha uma doença rara e incurável, o tratamento era caro, todo o nosso dinheiro foi gasto com remédios que amenizavam a dor, era tudo que podia ser feito, ela morreu na noite de natal do ano de 2001, ela tinha trinta e dois anos, eu, doze. Meu novo pai, Rogério Fontes, pagou os gastos com o velório e o enterro, depois, já com a minha guarda definitiva, continuou com os golpes.
            Agora eu estou indo embora, eu nunca desfaço minha mala, sempre estou preparado para ir embora, já que nunca sabemos quando vamos ser expulsos ou quando terei uma chance de fugir, como a que tenho agora. A janela do meu quarto não é alta, todos na casa estão descansando, são duas horas da tarde e eu tenho uma hora para chegar até a estação de trem.
            Cinco regras para fugir de casa:
            1ª: Verifique se você tem dinheiro suficiente para sobreviver por, pelo menos, uma semana.
            2ª: Carregue somente o essencial. Nunca leve o cachorro, o gato ou o papagaio, eles só irão atrasá-lo e será muito mais fácil de te encontrarem se a descrição for: “mais ou menos um e setenta de altura, moreno, olhos castanhos e um pastor alemão de cento e vinte quilos” (ok, eu exagerei aqui, mas você entendeu a ideia).
            3ª: Tenha um objetivo. Não importa se você vai para outra cidade ou para casa da sua avó, saiba seu destino e tenha sempre uma segunda opção.
            4ª: Saia de casa apenas se souber que irá demorar a perceberem que você fugiu. Afinal, você não quer ser pego na esquina da sua rua.
            5ª e mais importante: Tenha coragem. Digamos que você só queira ‘dar um susto’ nos seus pais, não vai adiantar nada você voltar correndo meia hora depois porque tem medo do escuro.
            No meu caso todos os passos já foram seguidos, o Rogério sempre me dava dinheiro antes de passar para uma nova vítima e eu tenho uma boa economia, comigo eu carrego sempre apenas o necessário, na minha bolsa há apenas algumas peças de roupas e material de higiene básico, além do meu inseparável MP4, previamente abastecido com cento e vinte horas de música. Meu destino já está escolhido e eu sei a hora em que o trem sai. O quarto passo sempre foi o mais fácil, eu sou uma pessoa altamente antissocial e desde que comecei a morar com o Rogério e as vítimas dele eu passo mais tempo trancado no quarto do que em qualquer outro lugar e na casa dessa nova vítima (Carla, Renata ou algo do tipo) sempre estive com o som ligado e só saía do quarto para as refeições, então eu tinha algumas horas antes de perceberem, quanto a quinta regra, bem, essa já era minha oitava (ou décima oitava, eu perdi as contas) tentativa de fugir, eu tinha a coragem suficiente para deixá-lo.
           Não havia ninguém na rua, esse foi um dos motivos que me fizeram escolher esse horário, nenhum vizinho me veria sair, ou seja, sem ligações para casa. Haviam poucas pessoas na estação de trem e ninguém reparou em um garoto de dezesseis anos carregando uma mochila e ouvindo música.
            Aproveitando que o trem estava vazio, eu escolhi uma poltrona longe dos outros passageiros. No meio da viagem um desses pastores ambulantes levantou e começou a pregar as ‘Boas Novas’.
            -... Como é que um homem pode se preparar para encontrar Jesus?
            Eu realmente não sabia essa resposta, e tampouco queria descobrir, então aumentei o volume do meu MP4 até ele começar a machucar meus tímpanos, isso bloqueou completamente a voz do homem, eu mal conseguia ouvir o som do motor trabalhando.
            Deixe-me explicar, eu acredito em ‘Deus’, só não consigo acreditar que Ele á tão benevolente quanto dizem. Meus pontos: 1º, a bíblia narra muitos fatos bons feitos por Ele, mas também fala de massacres que Ele ordenou, se Ele é realmente um ‘ Deus de Amor’, porque tantos assassinatos?
            2º: É dito que apenas Ele sabe o que acontecerá, livre arbítrio de lado, por que diabos (trocadilho infame) Ele criou um filho que se voltaria contra Ele? Ele criou a maldade e ninguém consegue me convencer do contrário.
            3º: As pessoas boas sofrem mais ou morrem mais cedo. Eu tenho muita pena do pobre Jó (mentira), que sofreu como ninguém simplesmente porque o deus em que ele acreditava resolveu fazer uma aposta com o filho rebelde. E minha mãe, que só parou de ir a igreja quando as drogas que ela tomava para não sentir dor impediram-na de andar, já nos seus últimos meses de vida, na época eu ainda rezava, minha última oração foi na noite anterior a morte dela, faziam dois dias que ela estava em coma, eu pedi por uma chance de me despedir, mas ela nunca acordou e eu jurei nunca mais rezar ou me ajoelhar para alguém de novo.
            Depois que o pastor mudou de vagão, um vendedor ambulante entrou, acho que ele tinha uns treze anos, e começou a recitar aquele texto monótono e chato que eles decoram para nos fazer ter pena e comprar algo, eu virei para o lado e fechei os olhos, felizmente ele me ignorou.
            Três vendedores, dois pastores e um pedinte depois, eu finalmente cheguei na estação, que ainda não era o meu destino final, apenas uma escala. Eu precisava visitar minha mãe antes de partir.
            O cemitério ficava a algumas quadras da estação, então eu fui caminhando. Havia poucas pessoas por lá, uma mulher na entrada (que me observou quando eu entrei), um casal de mãos dadas ajoelhado em frente a uma lápide e um homem usando um boné que lhe cobria o rosto (provavelmente chorando), parado a alguns metros do local onde minha mãe estava enterrada.
            Havia flores frescas no túmulo dela, o que era estranho já que apenas eu e o Rogério vínhamos visitá-la, eu coloquei as flores, que havia comprado no caminho, junto com as outras, foi quando alguém colocou a mão no meu ombro, eu virei-me, era o homem do boné.
            - Eu sabia que te encontraria aqui.
            E eu conhecia aquela voz, em um único movimento arranquei o boné da cabeça dele e recuei, era meu pai, a pessoa de quem eu estava fugindo.
            - Porque você fugiu garoto?
            - A pergunta é: porque você veio atrás de mim, de novo, e como me achou tão rápido?
            - Primeiro que eu prometi a tua mãe que cuidaria de você e também, eu já estava pronto para deixar aquela casa, eu fui te procurar você não estava no quarto e suas coisas também não, então eu corri até a estação, vi qual era o horário do trem que vinha para cá e consegui uma carona.
            - E o que você vai fazer agora?
            - NÓS, vamos embora daqui e eu sugiro que você pare de tentar fugir, porque você não irá embora antes de completar dezoito anos.
            Ele colocou a mão no meu ombro e me guiou para a saída, antes de chegarmos ao portão a mulher pela qual eu passei ao entrar, veio até nós, eu vi, pelo brilho no olhar dela, que a ‘carona’ que meu pai pegou havia se tornado a nova vítima dele.
            - Ainda bem que você o encontrou! Eu estava realmente preocupada que você não conseguisse!...
            Ela tagarelou por mais uns três minutos antes de ficar sem fôlego, todo esse tempo, ela não olhou para mim uma única vez sequer, o Rogério era o centro do universo para ela e isso demoraria algum tempo para mudar, dependendo da habilidade dele para roubá-la.
            Dessa vez ele havia escolhido bem, normalmente as mulheres que tem dinheiro não tem muito tempo para romances, então os alvos dele costumavam ser mulheres simples que ganharam muito dinheiro em um curto espaço de tempo e que ainda estavam deslumbradas com o sucesso. Mas esse não parecia ser o caso dessa nova vítima, ela estava vestida como executiva, eu aposto que ela era a razão do próprio sucesso, além de ser muito bonita, alta, magra, cabelos negros e curtos, olhos castanhos (vou compará-la a uma Top-model internacional, mas a imaginem com as formas bem definidas e não muito magra, ou seja, ela era muito gostosa) e com certeza não era uma presa fácil, acho que eu seria forçado a ficar alguns meses envolto em um clima romântico.
           Agora que eu a descrevi, me lembrei de que ainda não descrevi nem a mim nem ao Rogério, então vou começar por ele,
            Rogério Fontes (ou Roger, como minha mãe o chamava) havia sido um modelo de sucesso no começo da década de 90 (até descobrir que os golpes em mulheres ricas davam mais dinheiro e resolver mudar de profissão), ele tem trinta e cinco anos, alto forte, tem um corpo bem definido (resultado de várias horas diárias e noturnas de ‘malhação’), olhos verdes e cabelos castanhos, ele não parecia um golpista, quem olhasse para ele juraria que ele havia terminado a faculdade de medicina (na verdade ele só cursou três períodos).
            E eu, bem... eu tenho 1,80 de altura (e incrivelmente o Rogério é quase uma cabeça mais alto que eu), olhos escuros, pele bronzeada (segundo minha mãe essa era a única herança que meu genitor me deixou, já que ele a abandonou quando ela estava grávida de cinco meses) e cabelos escuros.
            - Esse é meu filho Samuel, e essa é Clarisse Salvatore.
            Ela tinha um aperto de mão firme (o Rogério quase quebrou o meu ombro, apertando para que eu estendesse a mão para ela), diferente das outras vítimas ela não me abraçou dizendo que sentia muito por eu ser órfão, nem se jogou nos braços do Rogério falando como ele era um a pessoa maravilhosa por criar o filho sozinho, em vez disso ela virou-se novamente para o Rogério.
            - Vocês têm para onde ir?
            O aperto no meu ombro significava que eu deveria entrar no jogo e eu sabia que ele era perigoso demais para que eu negasse isso.
            - Eu não volto para aquela casa! – minha voz transmitia medo (eu era um ótimo ator) – Se você me obrigar eu vou fugir de novo.
            - Não se preocupa, nós não vamos voltar. – ele olhou para ela – Vamos ficar em um hotel até encontrarmos uma casa
            - Porque vocês não ficam na minha casa?
            - Absolutamente não, você já me ajudou demais só por me trazer até aqui, qualquer coisa a mais seria abuso da minha parte,
            A voz do Rogério era tão expressiva que ela não discutiu, simplesmente nos ofereceu uma carona até o hotel. Chegando lá o Rogério se despediu dela e nós dois subimos para o quarto que ele alugou.
            - Essa eu não entendi. – eu disse assim que me joguei na cama – Achei que ela seria sua nova vítima!
            - Você ainda não aprendeu nada comigo Sam? – ele se jogou na outra cama – Paciência, em dois dias, no máximo, nós iremos nos mudar para a casa dela e você ganhará duas irmãs.
            - O quê? Irmãs?
            - É, a Clarisse têm duas filhas adolescentes, uma de dezoito e uma de dezesseis, talvez você se dê bem com uma delas. – ele sorriu e eu joguei uma almofada nele.
            - Cala a boca!
            Incrivelmente ele estava certo. Na manhã do segundo dia ela apareceu lá no hotel e, ao ver o meu estado (eu estava me recusando a comer depois que ele havia me dito que eu estava de castigo e só podia comer salada, tenho certeza que isso foi um golpe dele), nos intimou a mudarmos para a casa dela, dessa vez o Rogério não recusou.
            Ela morava em um bairro nobre da cidade, próximo a casa que pertencera a minha mãe, por algum motivo essa proximidade me deu arrepios e uma sensação ruim. A casa era enorme, seis quartos, sendo duas suítes, sala de jantar, de estar, copa, cozinha, garagem para três carros, academia e duas piscinas
            Quando chegamos havia um banquete a nossa espera, ela havia feito tudo antes de ir nos buscar e havia caprichado, havia de tudo um pouco, carne, frango, peixe, espaguete, risoto... uma lista imensa.
            - Quanto tempo nós vamos ficar aqui? – nós estávamos terminando de comer e a minha pergunta pegou o Rogério totalmente de surpresa.
            - Pouco, eu achei uma casa que talvez você possa gostar, amanhã nós vamos vê-la. – ele pensou rápido.
            - Chegamos! – alguém gritou da sala.
           Trinta segundos depois, aquelas que seriam minhas irmãs por um tempo irromperam pela porta, elas pararam ao nos ver, as duas analisaram brevemente o Rogério e, ao virar-se para mim, congelaram. Apenas um pensamento me ocorreu: seria difícil aturar aquelas duas.

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