segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um Pequeno Pedaço do Paraíso - Fase 1 - Capítulo 5


V O começo do inferno

“Estranha criatura o homem; não pede para nascer, não sabe viver e não quer morrer.”
Albert Einstein
  
            - O Samuel tá namorando!
            Essa foi a primeira coisa que as gêmeas disseram quando chegaram em casa. Eu me imaginei apertando os pescoços delas até elas conseguirem soletrar antiinconstitucionalissimamente de trás para frente.
            - Namorando?! – a Clarisse e o Rogério pularam do sofá (de novo, acho que ele não vai aguentar até o final desse golpe) – Com quem? – o Rogério completou.
            - Uma garota lá da escola. – respondeu a Ângela.

            - Isso é verdade? – não sei por que, mas a Clarisse pareceu preocupada.
            As gêmeas estavam bloqueando a minha passagem para o quarto e agora o Rogério estava com a perna no meu caminho e bem, se aquela fosse uma maneira de me livrar deles que seja.
            - É. Agora me deixem passar.
            O jantar foi um saco, eles não paravam de me encarar e eu engoli o mais rápido que eu conseguia para sair de lá o quanto antes, não estava com cabeça para lidar com aquilo naquele momento, precisava de um tempo para processar o que havia acontecido mais cedo.
            Depois que a Thayanne se livrou das duas, nós fomos para a praça onde estivemos no dia anterior, foi lá que ela veio com aquela ideia mirabolante.
            - Vamos fazer um acordo.
            - Que acordo?
            - Você quer tirar aquelas duas do teu pé e eu quero me livrar do Luan.
            - Você quer matar os três?
            Ela riu.
            - Não, vamos dizer para eles que estamos namorando, acho que assim eles nos deixariam em paz.
            - Tenho certeza que as gêmeas sim, mas duvido que isso aconteça no caso do Luan.
            Ela tinha uma dezena de argumentos para me convencer e eu acabei cedendo. Nosso acordo tinha dois pontos importantes:
            1° Nenhum dos dois poderia trair (partindo do princípio de que traição ocorre apenas se o outro tiver o mesmo CEP). Isso por causa do que ela havia dito ao Luan, que Thay Melo ou é apenas ela ou ninguém.
            2° Todo o resto estava liberado.
            O segundo ponto significava que não precisávamos apenas fingir, podíamos realmente namorar, então, segundo nosso acordo, nós estávamos namorando, só não podíamos trair na mesma cidade.
            Enquanto eu estava distraído em pensamentos a minha dor de cabeça voltou, mas dessa vez não veio sozinha, outra dor, algo completamente diferente e inexplicável, também começou. Eu não sei explicar onde estava doendo, eu sabia que a dor seria excruciante, mas nada nesse mundo poderia ter me preparado para aquilo.
            Imaginem que seu corpo está pegando fogo, que você está mergulhado em ácido e que seus ossos estão sendo arrancados através da pele, agora junte todas essas sensações ao mesmo tempo e multiplique por três. Depois de todos esses anos eu finalmente entendi porque a minha mãe gritava antes de desmaiar. Essa é a última lembrança que eu tenho daquele jantar, depois disso eu apaguei.
            Quando eu acordei estava em um quarto de hospital que cheirava a desinfetante, meu braço direito estava com uma agulha enfiada na veia enquanto eu tomava soro. Eu tentei levantar, mas minha cabeça girou e caí de novo na cama.
            - É melhor você continuar deitado. – a voz do Rogério veio de algum lugar ao lado da cama.
            - O melhor é eu levantar e ir embora, pena que eu pareço não ter forças para isso.
            - Você sabia que estava doente.
            Não era uma pergunta, então eu confirmei.
            - Desde os catorze anos, um médico me deu o diagnóstico, parece que essa doença é hereditária.
            - Eu não sabia, me desculpa.
            - Nem começa, não preciso que você tenha pena de mim, tudo o que eu quero é que você mantenha isso em segredo daquelas três, também não preciso da compaixão delas.
            - Mas eu acho que elas precisam saber! Nós moramos na mesma casa, elas vão acabar descobrindo.
            - Eu confio em você, sei que vai conseguir depenar ela antes que isso fique sério demais.
            - Mesmo assim...
            - Nem pensar, nós convivemos com a doença da mamãe durante muito tempo e sabemos como as pessoas reagem ao saberem dela, eu não quero aqueles olhares! Não quero que comecem a me tratar como uma pessoa especial! Eu quero tentar levar uma vida normal enquanto eu puder e você não vai estragar isso! Entendeu?
            A essa altura eu já estava de pé e segurando ele pelo colarinho, não me lembro de ter levantado, nem sei como consegui, mas acho que meus esforços valeram a pena, pois ele acenou com a cabeça, depois me obrigou a deitar de novo.
            Eu tive alta no dia seguinte, o Rogério convenceu a todos que eu tive apenas uma desidratação (tenho que aprender como fazer isso) e me levou para casa, quase, no caminho eu vi a Thayanne e o convenci a me deixar descer, eu podia voltar para casa depois.
            - Aquele era o seu padrasto? – ela me perguntou assim que ele foi embora.
            - Era.
            - Bonito, eu pegava fácil.
            - Cuidado com o que você diz, é capaz dele...
            - Dele o quê?
            - Nada, deixa para lá.
            - Ok, vai me levar pra sair?
            Era isso que eu gostava nela. Nós fomos dar um passeio pela cidade, eu ainda estava um pouco tonto e minha cabeça latejava levemente, mas eu preferia a companhia dela a das pessoas que me esperavam em casa e mesmo a minha própria. Mas é claro que eu tinha que voltar. Elas estavam me esperando, por isso eu já esperava, o que eu não contava era com a presença da diretora e de uma das minhas professoras, havia algo muito estranho acontecendo ali.
            - Por favor sente aqui Sam. – a Clarisse me indicou o sofá, como eu queria saber como aquilo iria acabar concordei – A sua diretora veio nos dizer que você anda matando aula.
            - Você entrou na nossa escola com uma condição especial, seu histórico escolar mostra muitas notas altas, mas também existem vários registros de agressão e mau comportamento, você foi avisado de que deveria terminar o ano letivo sem nenhum registro de má conduta e já temos um registro de agressão contra um aluno além dessas fugas. É por isso que eu e a professora Drica estamos aqui, pois se você não mudar o seu comportamento teremos que lhe expulsar.
            - Então, Sam, o que nós queremos saber é qual o motivo para esse tipo de comportamento? Tem alguma relação com aquela garota que você está namorando ou com o irmão dela?
            - O que a Thayanne ou o irmão dela tem a ver com isso? – como é que a Clarisse sabia que a Thayanne tinha um irmão, nem eu sabia disso.
            Eles se entreolharam e a Clarisse se apressou a explicar:
            - Você sabe que eu trabalho como psicóloga no colégio às vezes, e bem, o irmão da Thayanne é um dos meus pacientes, ele tem problemas com drogas.
            - A relação entre paciente e psicólogo não deve ser sigilosa?
            - Sim, mas isso é mais importante nesse momento, nos diga Sam, você está usando drogas?
            Eu juro, eu tentei segurar o riso, mas tenho orgulho de dizer que falhei miseravelmente, elas ficaram me encarando enquanto eu me curvava de tanto rir, havia séculos que ninguém me fazia rir daquela forma, mas só para não perder o hábito eu parei de rir e fiquei sério em segundos.
            - E se eu tiver? O que vocês têm a ver com isso?
            - Samuel! – o Rogério sussurrou.
            Ele estava atrás delas, então elas não puderam ver o olhar que ele me lançou, um olhar que dizia: não é hora para brincadeiras.
            - Não, eu não estou usando drogas e eu nem sabia que o irmão da Thay usava.
            - Então porque você foge da escola?
            - Algumas aulas são chatas e em outras eu já conheço as matérias, às vezes até mais que o professor, então para não atrapalhar a aula eu prefiro não assistir.
            - Mas não é assim que funcionam as coisas em uma escola Samuel. – a professora Drica colocou a mão no meu ombro – E dessa vez nós teremos que te mostrar que você não está acima dos outros alunos.
            - Exatamente, nós viemos aqui conversar com os teus pais e dizer para eles que você terá que fazer serviços comunitários se quiser continuar na nossa escola, caso contrário eu terei que te expulsar.
            Aquilo conseguiu me surpreender, trabalho comunitário? Eu? Dependendo de que tipo de trabalho fosse aquilo poderia terminar terrivelmente mal. Mas infelizmente eu não podia fazer nada, dessa vez eu tive que ceder, havia algo naquela escola de que eu não queria me desfazer.
            - Que tipo de trabalho seria esse?
            - Bem, você poderia ajudar a Andréia na secretaria, ou a Clarisse quando ela fosse trabalhar de psicóloga, também pode dar aulas de reforço nos finais de semana para os alunos das primeiras séries.
            Que ótimo, minhas escolhas eram, trabalhar com pessoas, trabalhar com pessoas e uma das gêmeas ou trabalhar com pessoas e com a Clarisse, será que não havia nada que não envolvesse lidar com público? Eu fiz essa pergunta em voz alta.
            - Hum... Você também pode trabalhar na limpeza e manutenção da escola.
            Ou eu poderia matar todas as testemunhas ali presentes e fugir, essa opção era tentadora.
            - Ok, fico com a limpeza.
            A expressão de surpresa deles era impagável, eu tive que me segurar para não rir de novo.
            - Tudo bem então. - a diretora se recuperou – Sábado que vem você terá que estar na escola às oito horas, agora nós temos que ir.
            Eu os deixei se despedindo e fui para o meu quarto, sem dúvida nenhuma minha vida estava começando a passar de pesadelo para um verdadeiro inferno. 

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