segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um Pequeno Pedaço do Paraíso - Fase 1 - Capítulo 2


II A escola costumava ser mais interessante

“Se existe um começo, existe um fim.
    Isso é regra.
    Pode até ser triste, mas ficar triste só porque é o fim não faz meu tipo.
    Por ser o fim, é melhor bagunçar ainda mais.
    Assim, independente de como seja o final, podemos terminar sorrindo.”
    Dante (Devil May Cry)
            Elas eram bonitas, muito parecidas com a Clarisse, exceto os olhos (elas tinham olhos verdes). Garotas do tipo que eu pegaria fácil se as encontrasse em uma balada, mas difíceis de aturar como irmãs. Observação pessoal: nota onze para a Clarisse e oito para as filhas.
            - Andy, Angel, que bom que vocês chegaram! - a Clarisse levantou e foi abraçá-las.
            O Rogério também levantou e a Clarisse fez as apresentações, elas o abraçaram como se o conhecessem a séculos, depois ela citou o meu nome, como eu não disse nada o Rogério fez uma piada sobre a minha seriedade (algo sobre os mortos sorrirem mais), então eu levantei e fui para o quarto onde havia deixado minha mochila, precisava ficar longe daquele clima de felicidade sufocante.
            Meu novo quarto era enorme e bem equipado, tinha uma cama de casal, guarda-roupa, escrivaninha, TV, dvd, aparelho de som, e um computador de última geração com acesso ilimitado a internet (minha coleção de músicas iria aumentar consideravelmente enquanto eu estivesse aqui). Eu liguei meu MP4 no aparelho de som e coloquei The Gazette para tocar, então liguei o computador, coloquei vários vídeos para carregar e me joguei na cama.
            Minha paz durou pouco, dez minutos para ser exato, foi esse o tempo que demorou para o Rogério vir me perturbar, ele já chegou desligando o som (eu odiava quando ele fazia isso) e, depois de trancar a porta, me expulsou da cama e se apossou dela.
            - Então, qual delas você vai pegar? - eu também odiava quando ele fazia essas perguntas, então dei a resposta menos óbvia possível.
            - A Clarisse.
            - Já tá achado que pode me substituir, moleque?
            Eu me sentei em frente ao pc e o ignorei, ele ficou alguns minutos em silêncio e retomou a conversa em um tom casual.
            - O que você acha de voltar a escola?
            Eu girei na direção dele:
            - Como é? Quanto tempo você pretende ficar aqui?
            Ele pegou o controle do aparelho de som e o religou, depois procurou até achar uma estação de rádio que o agradasse.
            - Acho que dessa vez vai demorar uns três ou quatro meses, você pode aproveitar e retomar seus estudos.
            - E você acha que alguma escola vai aceitar um aluno novo no meio do semestre?
            - Nada que o dinheiro não resolva.
            - O quê?! - acho que ele estava doente – Você vai gastar dinheiro para me colocar em um colégio?
            - Ei! Se eu tive problemas com a justiça porque você não frequenta a escola terei que gastar dez vezes mais para me livrar da cadeia.
            - Hum...
            - Então?
            - O que? – eu provoquei.
            - Porra! Você vai querer ir para a escola ou não?
            - Vou estar pensando no seu caso e estarei lhe respondendo em breve. - debochei – Obrigado por estar ligando.
            Ele fechou a cara e saiu do quarto, incrivelmente sem bater a porta. Eu assisti a todos os vídeos que o YouTube achou das minhas bandas preferidas, quando cansei da internet me joguei na cama, aumentei o volume do aparelho de som e desmaiei.
            Não, eu não desmaiei em sentido figurado, eu apaguei mesmo, perdi os sentidos, essa não era a primeira vez e nem seria a última, afinal, eu estava doente, e sabia disso desde os catorze anos. Logo depois da primeira vez que eu desmaiei, pouco depois de uma das minhas tentativas de fugir, fui até um médico, que me disse uma palavra que abalou o meu mundo:
            Hereditária.
            A doença que havia matado minha mãe era hereditária e havia começado a se manifestar em mim, os desmaios se tornariam constantes e, em alguns anos (se eu tivesse sorte), a dor se tornaria minha companheira. O Rogério não sabia sobre a consulta e muito menos sobre o resultado dos exames e para manter isso assim eu passei a ficar cada vez mais recluso, até agora havia dado certo, ninguém sabia dos meus desmaios, ir para um colégio faria com que fosse difícil esconder esse segredo, entretanto, por outro lado, eu gosto de estudar, mantêm a minha mente ocupada e já fazia quase um ano que eu não frequentava a escola, seria legal voltar a ter hábitos normais (não que a minha vida fosse muito normal).
            Eu acordei, ainda meio tonto, e olhei no relógio, havia ficado desacordado por três horas, isso era um novo recorde e superava o anterior em quase trinta minutos, a música ainda estava tocando, mas eu conseguia ouvir alguém conversando do lado de fora do quarto, então eu diminui o volume do som e abri a porta.
            Andy e Angel, ou melhor, Andréia e Ângela, de dezoito e dezesseis anos, respectivamente, estavam discutindo sobre quem iria me chamar, elas pararam imediatamente quando me viram.
            - O que vocês querem?
            Eu reprimi ao máximo o tom de desprezo na minha voz, acho que funcionou, pois elas sorriram e a Andréia respondeu:
            - O teu pai pediu para te chamarmos para o jantar.
            - Já estou indo.
            Sem esperar pela resposta (ou no caso, pelos sorrisos) eu fechei a porta e me joguei na cama, minha cabeça ainda girava e o Rock Metal que estava tocando a fazia pulsar levemente, eu podia sentir uma enxaqueca se formando. Depois de uns quinze minutos eu decidi levantar e, já com uma decisão tomada, me juntei a eles.
            Aquele era nosso primeiro jantar juntos (como se eu ligasse) e a Clarisse fez questão de lembrar isso em voz alta durante a oração (no final ela baixou a voz e pediu que isso se repetisse várias vezes). Não foi até o final do jantar que a pergunta pela qual eu esperava foi feita, entretanto a pessoa que a fez me surpreendeu:
            - Então... hã... Samuel. - Ângela escolheu as palavras cuidadosamente, talvez pensando que eu poderia atacá-los – Você já decidiu se vai voltar a estudar?
            Eu baixei a cabeça e levei alguns minutos para responder, silêncio absoluto:
            - Eu pensei. - o silêncio se prolongou por mais alguns segundos – É eu vou, só não quero voltar para o segundo ano.
            - Você pode fazer uma prova e começar no terceiro ano. - a Andréia parecia radiante, alguma coisa me dizia que a ideia havia sido dela – Eu só vou precisar dos teus documentos e do nome da tua última escola.
            - A Andy trabalha na secretaria da escola. - explicou a Clarisse – Foi ideia dela que você voltasse a estudar.
            Eu estava de cabeça baixa, concentrado no último pedaço de carne que havia no meu prato, e assim fiquei, mas olhei de relance para o Rogério, ele me ignorou brilhantemente, então eu levantei.
            - Já terminei.
            - Espera Sam. - o Rogério segurou o meu braço – As meninas fizeram mousse de chocolate para a sobremesa.
            - Você sabe que eu não gosto de doces. - eu puxei o meu braço e ele o soltou – Além do mais, eu não estou me sentindo muito bem, preciso deitar.
            Alguém disse mais alguma coisa, mas eu ignorei, minha cabeça parecia que ia explodir de dor, antes de deitar eu peguei alguns analgésicos no armário de remédios, dose suficiente para dopar um elefante.
            As duas semanas seguintes foram um saco (só para variar), eu decidi voltar a estudar na sexta-feira, na quarta seguinte eu fiz a prova, dois dias depois chegou o resultado, eu havia sido aceito (é óbvio) e podia começar imediatamente, mas como havia um evento na escola (jogos estudantis, eu acho) na semana seguinte não houve aula, então passaram-se duas semanas até que eu finalmente voltasse a estudar.
            A Clarisse ofereceu uma carona e, como eu não lembrava a localização exata do colégio aceitei, antes de sairmos de casa ela se despediu do Rogério com um beijo na boca, o golpe havia começado. No caminho da escola entramos em uma rua que eu conhecia muito bem, meu antigo endereço.
            - Para o carro! - ordenei.
            - O que foi? - as três me olharam assustadas e a Clarisse meteu o pé no freio.
            - Dê a volta por outra rua.
            - Mas esse é o caminho mais rápido. - Andréia (que estava sentada na frente) me encarou.
            - Só dê a volta.
            - Por favor. - a Clarisse apertava o volante com força e olhava fixamente para frente.
            - O quê? - o que diabos ela queria dizer com 'por favor'?
            - Quando se quer alguma coisa é comum pedir 'por favor'. - ela não virou-se para mim e continuou olhando para a rua.
            Eu a observei por alguns segundos, ela estava chateada, acho que não gostava de receber ordens, a mandíbula dela estava cerrada com força e os nós dos dedos estavam brancos de tanto ela apertar o volante, ela não iria ceder e eu fiz o que o que achei certo: sai do carro.
            O ódio me subiu a cabeça e bati a porta com força (a Andréia e a Ângela gritaram), quem ela achava que era? Nem o Rogério conseguia arrancar um 'por favor' de mim. Eu ouvi quando o carro arrancou, mas não olhei para trás e dei a volta no quarteirão, eu acharia a escola sozinho, não deveria ser difícil e não foi, eu apenas tive que seguir alguns alunos e pronto.
            Eu nunca havia entrado naquele colégio, mas eu lembrava muito bem da fachada do prédio e ela não havia mudado nada, haviam quatro pinheiros a vinte metros um do outro, três andares pintados de azul, dois de branco e um de vermelho (as cores da escola), totalmente cercado de grades, campo de futebol e pista de corrida e atrás do prédio, ainda no terreno da escola, havia um bosque, o prédio tinha um ar de prisão americana patriótica, em suma, um local interessante.
            - Vem Samuel, você tem que passar lá na secretaria antes das aulas. - a Andréia tocou no meu ombro, ela não estava com uma expressão muito feliz (como se eu fosse me importar).
            No caminho até a secretaria ela não disse uma palavra (e eu conversei pra cacete), os alunos que estavam no nosso caminho ficaram me encarando, eu os ignorei brilhantemente. Havia um casal brigando bem na frente da porta, a garota era bonita e o cara parecia um idiota (casal perfeito), eles se calaram assim que viram a Andréia, ou pelo menos o cara ficou calado depois que a garota deu um soco no ombro dele e saiu xingando deus e o mundo (obs.: gostei dessa garota).
            - Brigando com a Thay de novo Luan? - a Andréia olhou para ele, balançando a cabeça, depois virou para mim – Vai lá Sam, fala com a secretária, eu tenho que resolver outro assunto.
            Desde quando eu dei intimidade para ela me chamar de Sam? Eu entrei sem nem olhar para ela e a secretária me deu o mesmo tratamento, ela enfiou um papel com os meus horários na minha mão, perguntou alguns dados complementares para a minha ficha, me apontou a direção da primeira aula, desejou-me boa sorte e me mandou sair da sala, tudo isso sem tirar os olhos da Contigo! que ela estava lendo.
            Depois disso eu dei uma volta pela escola, assim eu aprendi onde ficavam todas as salas, laboratórios, banheiros e o refeitório, dessa maneira eu não teria que perguntar para ninguém, ou seja, sem contato desnecessário com pessoas enfadonhas.
            Eu sabia que os professores fariam eu me apresentar para a turma, por isso poupei meu tempo e só entrei nas salas após o começo das aulas, essa era uma ótima maneira de irritar os professores.
            As aulas de matemática e português foram chatas, durante a aula de Educação Física eu imagino que o professor tenha ficado rouco de tanto gritar comigo, como eu estava com os fones de ouvido não escutei uma única palavra e ele me deu minha primeira advertência, acho que isso foi um recorde, depois do intervalo tivemos espanhol com um professor cubano e química, a única aula realmente interessante do dia, pena que acabou cedo, a professora estava grávida e teve que sair mais cedo.
            Meu pai estava sozinho quando eu cheguei, ele estava jogado no sofá mas estava ofegante, como se tivesse acabado de correr.
            - O que você estava fazendo? Procurando o cofre?
            - Você quase me matou de susto moleque! Eu achei que era uma das garotas! Você está matando aula?
            - Óbvio que não! A professora saiu cedo;
            - O que foi que você já aprontou?
            - Nada, nada... - eu fui para o quarto e me tranquei e sim, ele estava procurando o cofre, eu o conhecia bem, ele não perderia uma chance sequer agora que o plano estava começando a funcionar.
            Eu estava muito concentrado, ouvindo música, quando a Clarisse entrou no quarto, seguida pelas gêmeas de idades diferentes e pelo meu pai, pela cara que ele estava fazendo acho que ela contou sobre o que havia acontecido no carro mais cedo e quando ele ficava com raiva eu me ferrava, não se esqueçam de que ele estava tentando dar o golpe do baú na pessoa com quem eu havia me desentendido.
            Eu só o havia visto com raiva três vezes desde que o conheci, a primeira vez foi com um cara que ameaçou bater na minha mãe, o Rogério havia partido para a briga e acabou quebrando o braço do cara em quatro lugares, a segunda foi comigo, e eu só não acabei no hospital por que ele foi um estudante de medicina muito aplicado, ele mesmo fez o curativo depois de quebrar a minha cabeça, e a terceira vez... bem, essa eu prefiro esquecer, já que os resultados foram catastróficos.
            - Sam, eu quero que você peça desculpas para a Clarisse.
            - Não Rogério, conversa sozinho com ele, eu tenho certeza que há uma boa explicação para o modo como ele agiu. - e eu sei que há uma boa explicação para essa minha vontade imensa de quebrar o computador na cabeça dela – Eu e as meninas vamos deixar vocês a sós. - ela se aproximou e sussurrou no ouvido dele – Têm paciência com ele, isso é coisa de adolescente.
            - Nós não vamos conversar aqui, você pode me emprestar o carro? Vou levá-lo para dar uma volta.
            Eu o encarei, ele queria um lugar sem testemunhas, ia me matar e se livrar do corpo, o golpe na Clarisse ia por água a baixo, mas pelo menos ele ficaria com o carro.
            - Claro, a chave está atrás da porta. - que ótimo! Agora ela me odiava tanto que queria que eu morresse, era capaz até dela aceitá-lo de volta depois que eu estivesse fora do caminho.
            - Vamos Sam. - ele deu um passo na minha direção, agarrou o meu pulso e me levou até a porta, foi quando eu soltei o meu braço e fui em direção ao carro, ele destrancou as portas e eu me joguei no banco de trás.
            Nós rodamos por cerca de quarenta minutos, durante todo o caminho havia um sorriso brincando nos lábios dele, eu estava começando a ficar tenso, o que diabos será que ele estava pensando? Ele estacionou em frente a um bar, desceu e voltou com quatro latas de cerveja (boa ideia, ele iria tentar me embebedar antes de me matar, mas, só quatro latinhas? Quem ele estava achando que eu era?).
            - Vai precisar de mais do que isso para me embebedar, o triplo pelo menos.
            - Não surta, garoto, duas dessas são para mim. - ele estacionou em uma praça – Vamos conversar.
            - Conversar? Sobre o quê?
            - Sobre a nossa primeira vitória, - ele abriu uma latinha e passou para mim, depois abriu outra e tomou um gole – a Clarisse está preocupada com o modo como você agiu hoje, por isso nós conversamos sobre você, quando eu expliquei que a rua onde vocês estavam era onde nós havíamos morado ela disse que você deve ter trauma daquele lugar, e que você poderia tentar frequentar um psicólogo, para resolver isso.
            Ele falou com um ar deboche, mas eu vi outra coisa, um brilho diferente no olhar dele (que com certeza não era devido a cerveja), isso me assustou mais do que qualquer outra coisa, porque eu já havia visto aquele brilho, toda vez que ele olhava para minha mãe, isso significava que meu pior pesadelo havia se tornado realidade, ele havia se apaixonado de novo (é claro que eu surtei).
            - Você só pode estar brincando! - eu me levantei e aumentei a voz – Eu não consigo acreditar que você se apaixonou por ela!
            - Fala baixo garoto, as pessoas estão olhando. - ele apontou para um casal sentado ali perto.
            - Que se danem! Como você pôde deixar isso acontecer? Idiota bastardo!
            Até eu sei que exagerei nessa e percebi isso quando ele me levantou pelo pescoço, amassou a lata de cerveja no meu peito e me jogou no chão.
            - Olha como você fala comigo moleque! Não vai me custar nada abrir a tua cabeça de novo!
            Eu me levantei e o encarei (meu peito latejou dolorosamente), ele estava com um brilho maníaco no olhar.
            - Agora eu reconheço você, não aquele idiota apaixonado que eu acabei de ver, você é bruto e descontrolado, não se esqueça disso. - eu comecei a caminhar em direção a rua quando ele me chamou, eu me virei e ele jogou uma das latas cheias, que eu aparei com uma das mãos – Para que isso?
            - Se você não quiser beber pode ao menos usá-la para evitar que fique inchado onde a lata pegou.

            Eu balancei a cabeça em descrença, Doutor Jekyll e Mrs. Hyde, o médico e o monstro em uma só pessoa, ele era um idiota. Eu segui meu caminho e fui embora para casa de táxi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário