segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um Pequeno Pedaço do Paraíso - Fase 1 - Capítulo 3


III Um pequeno flashback antes de toda essa loucura

‘Existem três tipos de pessoas neste mundo, aquelas que amamos, as que ignoramos e as que queremos matar.’
Sam
            Eu passei todo o mês seguinte de muito mau humor, agora imaginem, se já é difícil me aturar quando eu estou só de mau humor, quando eu estou de muito mau humor isso se torna uma missão impossível, tanto que eu fui suspenso da escola por três dias, mas eu juro que não foi minha culpa, eu só quebrei o nariz de um idiota que esbarrou em mim e ainda teve a cara de pau de sorrir.
            - Isso só pode ser um recorde! - eu estava sentado no sofá enquanto o Rogério gritava – Quanto tempo você demorou para ser suspenso da última vez? Quatro? Cinco meses?
            - Três e meio.
            - Sabe garoto, às vezes eu tenho vontade de te matar, apertar o teu pescoço até você parar de respirar...
            - Imagino.
            -… tem que passar uma boa imagem, durante o tempo que estamos aqui, mas não, todo dia age como se fosse um marginal...
            Depois disso eu parei de ouvir, só via a boca dele abrir e fechar, acho que ele deve ter falado por quase meia-hora, mas todo o resto entrou por um lado e saiu pelo outro, um pouco depois a Clarisse também veio conversar eu a mantive ocupada durante bastante tempo apenas com respostas monossilábicas, acho que a deixei feliz, não era a minha intenção mas tudo bem.
            Apesar dessa suspensão minhas notas eram altas, média nove e dez em todas as matérias. Alguns professores me consideravam um gênio recluso e outros um vagabundo interessado (eu sei, isso é meio contraditório, mas não são minhas palavras), os outros alunos também estavam divididos, os garotos me achavam um idiota metido e as garotas um gostoso metido e como para pegar garotas não é preciso ser muito sociável, eu 'fiquei' com toda a parte feminina da sala em um mês, essa foi uma das distrações que eu arranjei.
            Outra distração eu encontrei nas aulas de EF, o futebol. Honestamente, eu era bom, e as garotas que bancavam as líderes de torcida se amarravam, só havia um problema: eu estava prestes a ser suspenso de novo.
            Deixem-me explicar o motivo: eu havia roubado a bola no meio de campo e estava quase na grande área quando o primeiro idiota que eu vi na escola (aquele tal de Luan que estava tendo uma D.R em frente a secretaria) me deu um carrinho por trás, nem por um segundo sequer eu pensei em fazer simulação, pelo contrário, levantei rapidamente e parti para cima dele, infelizmente, antes de eu poder alcançá-lo, cinco outros jogadores me seguraram.
            - Calma aí amigão! Foi sem querer. - ele chegou perigosamente perto – Eu fui na bola.
            Foi a gota. Eu aproveitei que estava sendo contido, dei um impulso com os pés e acertei um belo chute duplo no peito daquele idiota, que foi para o chão imediatamente, bem neste momento o professor/técnico (Fábio Qualquer Coisa) apitou no meu ouvido e me mandou para o chuveiro, como eu já havia ganhado meu dia, nem reclamei. Havia uma garota encostada na parede ao lado do vestiário, era a namorada do Luan, desgraçado de sorte, eu já disse que ela era bonita, mas enquanto eu caminhava na direção dela pude observá-la melhor.
            Ela era baixa, magra, tinha os seios com os quais todo homem sonha, morena de traços e (até onde eu sabia) personalidade forte, com certeza absoluta meu tipo de garota. Quando me aproximei ela me observou de cima a baixo (fazendo uma careta quando olhou para minha perna), eu pisquei para ela que sorriu, balançou a cabeça e foi ver o namorado dela.
            Na hora em que a água do chuveiro escorreu pelo ralo eu vi que o piso do banheiro estava completamente tingido de vermelho e que na minha perna havia uma enorme rasgadura, resultado das travas da chuteira daquele idiota retardado. Assim que eu saí do banho, rasguei uma tira da toalha do Luan e amarrei na perna para estancar o sangramento, depois fui até a enfermaria levar alguns pontos.
            Outro fato sobre mim: eu não costumo sentir dor, aquele rasgo na minha perna não doía mais do que um espinho no dedo, acho que é porque o meu corpo foi preparado para sentir um nível de dor muito maior do que aquele, dor que eu ainda não fazia nem ideia de como era.
            Como era sábado eu não fui direto para casa, em vez disso decidi dar uma volta pela cidade, após pouco mais de duas horas caminhando minha perna começou a adormecer e eu resolvi voltar para casa, eu sabia que não havia ninguém lá, o Rogério ia sair para jantar com a Clarisse e aquelas outras duas garotas, como eu estava de “castigo” fiquei de fora dessa cilada.
            Quando cheguei em casa pedi uma pizza “família” (que eu iria comer sozinho, é claro) e uma Coca-Cola de dois litros e meio (idem), enquanto esperava pela entrega eu baixei um filme da internet e o gravei em DVD (internet banda larga e um supercomputador são mais rápidos do que o entregador de pizza), depois foi só Home, pizza e Coca até as duas da manhã, que foi o horário que eles chegaram (eu me joguei na cama antes deles entrarem).
            No domingo eu tentei evitá-los, infelizmente isso não foi possível, não durante o dia todo pelo menos, e para o meu azar a primeira pessoa que me viu foi a infeliz (e observadora) da Ângela, os olhos dela pularam do meu rosto para a perna em questão de milésimos de segundos e dez vezes mais rápido do que isso todo o resto da casa já sabia que eu estava machucado.
            - Como você se machucou? - era incrível como o Rogério era bom em atuar, realmente parecia que ele estava preocupado, acho, sinceramente, que ele deveria ganhar o Oscar.
            - Jogando futebol, não foi nada, só alguns pontos, nem sequer doeu.
            - Alguns pontos? - a Clarisse perguntou – Quantos exatamente?
            - Cinco.
            - Vocês estavam jogando futebol ou tentando se matar? - eu encarei o Rogério por alguns segundos, rapidamente ele percebeu que não iria gostar da resposta e mudou de assunto – Deixa para lá, me mostra o teu boletim, deixa eu ver se você está realmente está estudando.
            É lógico que ver meu boletim era ridículo, como já disse, eu mantinha minhas médias em alta e, é lógico também, que eu comecei a gargalhar quando ele perguntou onde estavam os meus cadernos.
            - Eu disse alguma piada?
            - É claro que disse, ou você realmente acha que eu tenho algum caderno?
            - Por que não? O que tem dentro da tua mochila?
            - Minhas roupas, é óbvio! - ele abriu a porta do guarda-roupa para confirmar.
            - Você frequenta a escola e não tem sequer um caderno? Como você anota os assuntos? Ou você anda colando para conseguir essas notas altas?
            - É óbvio que eu estou colando. Agora sai do meu quarto que eu quero ouvir música.
            Incrivelmente ele saiu sem dizer nada, acho que ele deve ter percebido a minha mentira, porque, por mais incrível que possa parecer (principalmente para aqueles que 'estudam'), eu nunca precisei colar, já que sabia todos os assuntos que eram passados na aula decorados, graças a minha memória fotográfica.
            Alguns devem estar pensando: “poxa que legal, ele tem memória fotográfica, deve ser o máximo!”, por um lado era sim, mas na maioria do tempo era um saco. Imagine lembrar-se de todos os detalhes do dia da morte de sua mãe, a roupa que você, o médico, a enfermeira, a recepcionista, o porteiro, a visitante do quarto ao lado usavam, o perfume vagabundo que a acompanhante do paciente do andar superior usava quando chegou (que era diferente do perfume ainda mais vagabundo que ela usava quando saiu). Ou seja, 98% do tempo eu odiava a minha memória.
            Mas, voltando ao assunto, como agora a casa toda sabia que eu estava machucado, foi impossível suportá-los por muito tempo, já que a cada dez minutos algum deles batia na porta do quarto, depois da quinta vez eu perdi a paciência, peguei meu MP4 e sai de casa (pela janela para que nenhum deles me visse) e comecei a caminhar a esmo pelas ruas desertas. Acho que o meu subconsciente, aliado ao CD que eu estava escutando, foram o responsável por eu caminhar naquela direção, quando eu notei para onde estava indo já era tarde demais, eu estava em frente a minha antiga casa.
            Eu amava e odiava aquele lugar, foi ali que eu fui criado desde o meu nascimento, durante toda a minha infância e início da adolescência, naquele lugar eu passei os momentos mais felizes da minha vida, mas foi naquela casa que eu comecei a me tornar o ser frio que sou hoje. Vou dar uma pequena pausa no tempo real e contar como foi a minha vida naquele lugar e minha saga para me tornar... eu.
            Eu nasci numa segunda-feira, trinta e um de Outubro, minha mãe disse que era um dia chuvoso e frio, ela estava sozinha em casa quando a bolsa estourou, foi dirigindo sozinha para a maternidade e quando tivemos alta me levou para casa, só então as visitas começaram a aparecer.
            Minha mãe era a diretora de uma poderosa empresa do ramo de tecnologia da informação, era uma mulher independente e gostava de manter um padrão de vida bem alto, nós não tínhamos nenhum parente morando perto, mas nossa casa sempre estava cheia de pessoas, graças às festas que sempre dávamos, vivíamos felizes e cercados de pessoas, mas isso começou a mudar naquele dia.
            Era sábado à noite e a casa estava cheia, estávamos comemorando os aniversários do mês quando minha mãe caiu desmaiada, houve uma correria e uma tremenda confusão, todos falavam ao mesmo tempo e ninguém fazia nada, quem a ajudou foram dois estagiários da empresa que a colocaram no carro e levaram-na para o hospital.
            Mesmo sem a anfitriã a festa continuou e para fazê-los ir embora eu desci até o porão e desliguei a chave geral, acabando com a festa. Depois que todos foram embora eu fui dormir no quarto da minha mãe. Foi ela quem me acordou no dia seguinte, estava um pouco pálida e muito cansada, mas no geral parecia bem e eu fiquei feliz por ter sido apenas um susto. Na época eu não sabia o quanto eu estava errado.
            Três meses depois ela começou a chegar em casa mais tarde, cada dia parecia mais feliz, durante dois meses eu apenas pude supor os motivos, até que um dia o 'motivo' foi jantar lá em casa: Rogério Fontes.
            Logo que eu o vi percebi que havia alguma coisa errada, aquele jeito de bom moço, sorriso simpático, educação impecável, comportamento exemplar, em suma, uma pessoa perfeita demais para ser real. Ele jantou lá em casa naquela noite, e na seguinte e na outra também, ora minha mãe cozinhava, ora era ele quem preparava o jantar, as vezes pedíamos pizza, comida chinesa, etc. O tempo passava e minha mãe parecia cada vez mais apaixonada, foi quando o quadro de saúde dela se agravou, foi só nesse momento que eu realmente soube quem o Rogério realmente era.
            Minha mãe estava internada haviam três dias e ele aproveitou para fazer a limpa na casa, e eu digo isso de uma maneira totalmente literal, um dia eu cheguei da escola e os quadros, as joias, o dinheiro e os móveis haviam sumido, e junto com eles o Rogério, eu decidi que contaria para a minha mãe quando ela recebesse alta, todo dia, quando ela perguntava por ele eu dizia que não sabia, no oitavo dia, quando ela finalmente saiu ele estava lá para buscá-la e quando chegamos em casa tudo estava de volta ao seu devido lugar. Alguns anos depois eu soube o motivo daquilo, ele havia se arrependido, o idiota já estava completamente apaixonado.
            Daí em diante a saúde dela piorou rapidamente, ela teve que pedir demissão por não conseguir mais trabalhar, tivemos que viajar para a França atrás de respostas, foi lá que ouvimos o terrível diagnóstico.
            - Je suis avec les résultats de leurs examens à la main. Regnette les nouvelles ne son pas bonnes, la maladie a progressé très rapidement et ausaint robablement seulement quelques mois ou quelques années. Je suis dé solé. Je peux seulement dine que vouz apprécierez temps avec sa famille.
            Vocês entenderam? Bem, eu também não, eu só soube o que aquelas palavras significavam, três meses depois, quando um médico brasileiro confirmou o diagnóstico.
            - Infelizmente não houve nenhuma alteração no resultado dos exames, mas eu acho que o Dr. Pagnnè foi um pouco otimista na sua expectativa de vida, de acordo com os resultados você tem menos de um ano...
            Eu não consegui ouvir o resto, saí correndo do consultório e fui parar no mesmo local que estou hoje, em frente a casa que havíamos acabado de vender, devo ter ficado por ali durante quatro horas, foi o Rogério que me encontrou e me levou para casa, minha mãe estava dopada, ele disse que ela havia gritado de dor durante umas duas horas antes dele conseguir convencê-la a tomar os remédios.
            O Rogério havia comprado duas grades de cerveja e foi nessa noite que eu tomei meu primeiro porre, eu nem havia feito doze anos.

            Com minha mãe desempregada e o Rogério sem poder arrumar um emprego, pois não podia deixá-la sozinha, nossa situação financeira rolou ladeira a baixo e foi atropelada por um caminhão, mal conseguíamos comprar os remédios que aliviavam a dor, quando tivemos que aumentar a dose decidimos que era hora de interná-la. Ela não saiu mais com vida daquele hospital.

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